Enjeitados
Por Alice Vieira
Como todos sabem, eu nunca fui criada com os meus pais, e andei sempre em casa de uns, e em casa de outros, etc. Uma coisa boa que todas essas casas tinham era livros, muitos livros, e eu podia mexer em todos e lê-los. Era a maneira de estar sossegada e não maçar ninguém.
De todos esses livros, o meu preferido era um, de capa azul, chamado “O Menino Enjeitado”, de J. M. Powell. Rapidamente passou a ser um dos meus livros preferidos. Um dos que ainda hoje andam sempre comigo, um dos que tenho dado a todas as crianças que conheço e todas elas têm adorado.
É a história de um menino que um dia foi abandonado à porta de um casal sem filhos. O casal ficou louco de alegria, e tratou-o sempre muito bem, dava-lhe tudo o que ele queria, levava-o a passear, ao estrangeiro.–tudo, absolutamente tudo. Ele foi sempre uma criança muito feliz.
Mudando de assunto: as velhas com quem eu vivia na altura, mandavam-me sempre chamar quando tinham visitas para lhes mostrarem a “obra” de caridade que estavam a fazer. Um dia uma delas perguntou-me o que é que eu queria ser quando fosse grande–e eu respondi:
— Eu quero ser enjeitada.
Por aquilo que eu tinha lido, era a melhor vida que eu podia ter!
Mas, infelizmente, lá em casa ninguém tinha lido o livro e eu fui fechada num quarto o dia inteiro, sem comer.
Por acaso não foi coisa que me aborrecesse muito, eu detestava as velhas e um dia inteiro sem as ver era até uma alegria, e eu nunca tinha muita fome. Além disso, era no meu quarto que estavam todos os meus livros.
Mas de cada vez que elas abriam a porta, eu fazia de conta que estava a chorar e que me sentia ali muito mal, e elas ficavam muito felizes (ainda hoje estou para saber por que não fui para atriz de teatro…).
Mas um dia — há pouco tempo — quis saber mais acerca do autor. Wikipedias e mais dicionários de autores — mas tudo era muito estranho.
O único J, M, Powell que eu encontrava era oficial do exército, sempre em guerra por aqui e por ali — sobretudo em África. Não me parecia que um desses pudesse ter escrito aquele livro cheio de ternura e meiguice. A editora que tinha publicado o livro já não existia, mas lembrei-me de falar com uma das minhas amigas da Leya que se riu e disse, “esse J.M.Powell não existe, quem escreveu isso foi o Mário Domingues!”
Eu nem queria acreditar. Todos nós conhecíamos o Mário Domingues, que era quem traduzia tudo.
E eu fui buscar o livro e realmente na contra-capa dizia: “tradução de Mário Domingues”.
Diga-se de passagem que nós até nem gostávamos muito da maior parte dos livros que ele traduzia… E agora isto!
Pelo sim, pelo não, nunca mais fui buscar livros que ele tenha traduzido (até porque estão todos em Lisboa…) para não encontrar mais casos iguais a este.
Alice Vieira
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia, sendo considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira